Meditação na cozinha



Há várias formas de meditar. A imagem do Buda sentado em postura de lótus, coluna ereta e semblante zen, de quem está pra lá de Marrakesh, pode ser a mais clássica e simbólica, mas não é a única. Eu, por exemplo, nestes tempos de coronavírus, danei a meditar na cozinha. Melhor, cozinhando.
No começo do isolamento, que já se alonga a 39 dias, relutei bastante.

Não contra cozinhar, pois não me parece que tinha alternativa. Sei cozinhar, estou longe de ser uma “cozinheira de mão cheia”. Acho que dou para o gasto. Nunca gostei da cozinha cotidiana, da necessidade de enfrentar o fogão todos os dias, mas sempre vi beleza e encanto na orientação de nutricionistas, naturalistas, e similares, sobre o barato que é cozinhar sua própria comida. Todo santo dia. Jura? Não para mim bebê. De vez em quando um prato especial, exótico, podia ser.

Mas tive o privilégio de ter comidinha fresca na mesa durante toda a infância e adolescência. Das mãos de fada mineira de minha mãe Léa. As mãos dela cheiravam a alho, não havia creme ou perfume que tirasse aquele aroma. O mesmo que eu sentia quando tirava a rapa queimada de arroz da panela de ferro. Ô coisa gostosa! As panelas eram de ferro que ela areava (limpar com areia mesmo, no muque), deixava todas “um brinco”. 



Dona Léa curtia o processo do mercado à panela

Na infância me lembro que ainda cozinhava com banha de porco que ficava em um latão embaixo da pia. O cheiro da gordura esbranquiçada me dava náuseas, ainda mais quando, além da banha, lá ficavam entalados pedaços de carne de porco e vaca, orelhas, pezinhos, focinhos, uma escatologia animal completa. Era o jeito de conservar as carnes, já que a geladeira ainda era uma novidade.

Dona Léa adorava cozinhar desde o início, desde ir ao mercado, conversar com cada dono de banca, pechinchar nas compras, carregar a cesta (ou chamar um menino para ajudar, tantos que ficavam perambulando pelo mercado), destroncar a galinha, porque não se comia frango nem de granja, nem orgânico, nem criado solto e livre de hormônios, era galinha mesmo e só. E começava a sessão na cozinha.

Era um “vá que vá” como dizia minha avó Maria, um movimento diário de cheiros, borbulhas, fumaça, cores, até que tudo era exposto na mesa. Assim foi por toda uma vida.


As "tias panelas"

Aqui retorno à minha relutância inicial contra a cozinha em tempos de corona. Nos primeiros dias cheguei a pedir aqui e ali um “delivery” de lugares onde costumo comer quando não quero saber da cozinha.

Claro, não é a mesma coisa, nem passa perto. Ver aqueles alimentos ali espremidos em uma quentinha de isopor, dá não. E o ritual de “ir comer fora”, nem que seja em um quilão da vida, colocar roupinha legal, sentar e apreciar a paisagem... não, nada a ver. Então, como disse, sem alternativa, me joguei na cozinha.

E aos poucos a imagem de minha mãe com aquela alegria toda ao cozinhar, foi tomando conta, penetrando em todos os sentidos. O desconforto nas costas dos primeiros dias (pura tensão) foi desaparecendo.

A primeira lembrança foi a relação dela com as panelas, primeiro de ferro, de pedra-sabão, depois de alumínio, e nos últimos anos de inox. A todas dava um nome. Como teve uma infinidade de tias colocava os nomes delas. Me lembro da Escolástica, que chamavam de Colaca, o nome mais engraçado.

Mas tinham também as tias panelas Aninha, Chiquinha, Ruth, Mariinha, não vou lembrar de todas. O importante dos nomes é que permitiam que cada panela adquirisse personalidade e vida própria, o que franqueava à dona Léa a liberdade de conversar com elas (as panelas).

Conversava, xingava quando alguma coisa não dava certo, o doce não dava o ponto, ou um trem queimava. Raros momentos, porque o que predominava era um harmonioso entrosamento de cheiros e música. Além de tagarelar com as panelas, também cantava.

Foi esperando o almoço, depois ajudando na cozinha, que conheci as cantoras do rádio, Aracy de Almeida, Dalva de Oliveira, Emilinha, Elizeth Cardoso, e tantas outras. 


Flutuando na cozinha

Minha conclusão é que esses momentos de minha mãe na cozinha é o que os iogues ocidentais modernos chamam de “estado de flow”, algo assim como estar totalmente imerso em uma ação presente, uma forma de meditação.

E de uns dias para cá esse tal de flow (fluir, né?) começou a tomar conta de mim na cozinha. Cortar um alho bem picadinho, assistir a ele ficar dourado no ponto no azeite, a fumaça cheirosa que sai da panela quando lá jogo o arroz.

Também tenho me flagrado cantando e, o que é melhor, assim cozinhando, por alguns momentos do dia, esqueço completamente a tragédia que vivemos, e o besteirol enojante que sai diariamente das bocas de quem deveria estar cuidando de nossa gente.

Fabíola de Oliveira é Jornalista e escritora, praticante contumaz
do ceticismo político-ideológico

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