Meu coração não é de ferro

 

Ilustração de um coração de papel cor-de-rosa, partido ao meio e costurado por um fio branco
Photo by Kelly Sikkema on Unsplash

Se voce tem um coração, estar nas redes sociais é amplificar angústias. E elas são muitas; as redes sociais e as angústias. Umas atreladas às outras, se retroalimentam indefinidamente.

Nós mesmos as alimentamos minuto a minuto, ampliando a interdependência que transcende o ambiente digital e invade o físico, adoecendo a todos.

Você pode pensar: Ah, mas eu estou bem.

Será mesmo? Está bem seguindo uma receita de alimentação saudável do Tik Tok, um plano de exercícios de um preparador físico do Youtube e a orientação milagrosa de um coach do Instagram para ficar rico em 30 dias.

Enquanto isso, diz bom dia aos filhos e aos pais pelo Whats App, troca ideia com os amigos pelo Threads e faz posts com suas melhores perfomances e ideias profissionais para o Linkedin. Só para ficar nas redes mais populares. Pois são muitas as redes específicas por grupos de interesses.

Pois é, se for assim, alguns terapeutas colocariam o seu “estar bem” em séria dúvida. E apenas alguns, pois muitos deles também surfam a mesma onda que você (e eu).

E aí, chegamos às angústias. Como estar de fato bem nesse mar de informações sobre o mundo, sobre amigos, sobre parentes e desconhecidos?

Rolando as telinhas ficamos sabendo sobre pessoas seriamente doentes e também daquelas que foram ali tomar um soro pós-balada. Um ícone de “luto”surge de repente - priorizada pelo algorítmo - e te dá um susto. O parente de um amigo distante partiu. Ufa, não foi alguem próximo. Mas poderia ser e o susto já deu aquela taquicardia básica.

O feed segue implacável no aparelho grudado às mãos. A Rússia solta bombas na Ucrânia, barcos são explodidos no mar do caribe, imagens de Gaza transformadas em escombros com crianças indigentes e famintas se misturam às lágrimas das mães de Israel, que aguardam por corpos de seus filhos amados.

Para dar um respiro, vídeos de cachorros destruindo colchões e um gato despencando do sofá onde adormeceu arracam sorrisos de quem assiste.

E então vemos o casamento do sobrinho da vizinha da colega de trabalho, julgamos as roupas, achamos o bolo de gosto duvidoso e seguimos.

Aquele conhecido que você até admirava posta um story com um viés ideológico bem diferente do seu e a solução óbvia e rápida é bloqueá-lo. Pronto. O algoritmo entende o recado e ajusta os contatos da sua bolha e o que você vai ver.

O amigo que você não econtra há anos avisa no post caprichado que está de mudança para a Austrália, um ex-colega colega consegue uma promoção e chega o aviso que aquele conhecido da infância perdeu um filho, menino ainda. Quanta dor nas palavras gravadas que ficarão lá, dizem, para sempre. Que vez ou outra voltará como lembrança ao feed dele, atiçando as brasas da tristeza profunda. Se ele compartilhar a lembrança, você também retornará para aquele momento de dor.

Então, o ciclo da angústia recomeça. As dores alheias são novamente suas. As redes nos colocando em contato com assuntos que talvez nem devessem ser do nosso conhecimento. Lidamos com eles reagindo com emojis. De carinha feliz, de força amigo, de raiva, de amor, sorriso, gargalhada.

Ah, tem uma porção de bons exemplos também nesse feed sem fim, gestos bonitos que servem de inspiração. Tem sim. Alguns até de situações armadas, mas ainda assim inspiradores. E nem vamos falar do vídeos de inteligência artificial que já não se pode distinguir dos reais.

Nosso cérebro superaquece os neurônios tentando trabalhar no ritmo de uma IA avançada para processar tudo isso e traduzir em emoções. Mas fica cada dia mais difícil para as mentes cansadas, sem uma pausa, sem um abraço caloroso, sem um aperto firme de mãos, sem olhos nos olhos e a coragem de ser de verdade.

E, voilà, sem perceber estamos imersos em um mar de angústias. E para tentar resolver a ansiedade que isso provoca “damos um Google” em busca de soluções rápidas para o problema. De lá, somos enviados para os vídeos de psicólogos e ‘estudiosos da mente humana’ formados na faculdade da web e estamos de volta ao círculo sem fim do modo existencial moderno.

Escapar é bem difícil, eu sei. Mas é imperioso tentar. Porque como bem disse José Saramago: “Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia.

Mulher grisalha, sorridente, usando óculos de armação preta.
Maria D'Arc é jornalista

 

 

 


Postar um comentário

0 Comentários