Domingo interrompido

 Paisagem de praça, com área de gramado e árvores do lado direito da imagem, com duas ambulâncias do Samu paradas no centro da imagem e algumas pessoas caminhando em volta.

Talvez ele tenha se espreguiçado na cama e feito planos para o domingo que estava começando. Podemos imaginar que ele colocou água para ferver, equilibrou o coador na boca da garrafa térmica, colocou lá duas colheradas de pó de café e, enquanto amarrava os tênis, aspirou fundo o perfume da bebida que começa o dia de tantas pessoas.

Desperto com uma porção de cafeína, teria alongado as pernas e saído para a caminhada. As praças do bairro onde vive são muito próprias para os exercícios com a grama sempre aparada e abundância de árvores  e arbustos. 

Nesse começo de inverno, os ipês rosa já estão carregados de flores, embelezando ainda mais a paisagem. Volta e meia, as belezas naturais esticam o assunto para além do 'bom dia', entre os atletas de fim de semana, à beira do lago. Nada demais, só agradáveis conversas de cortesia entre desconhecidos, atrás das máscaras pandêmicas.

Mas, hoje, ele não completou o percurso. Provavelmente o ar faltou, o peito se contraiu; sabe-se-lá o que de fato acomete alguém na hora de um infarto. Foi ao chão, na pista de caminhada que deveria ser sua aliada contra esse tipo de mal. Caiu ao lado do arbusto de agave, perto da goiabeira que cresce quase à sombra da imensa figueira, na pontinha da praça.

Alguém ligou pedindo ajuda e a primeira ambulância do Samu não demorou a chegar, abrindo caminho com seu lamento de urgência na pasmaceira das primeiras horas da manhã de domingo. 

 A viatura médica parou ao lado do homem que vestia bermuda, camiseta e tênis e não carregava documentos. Pra quê documentos, se ele ia apenas caminhar e voltaria logo para viver o seu domingo?

Os paramédicos desceram correndo e começaram os exercícios de ressuscitação. Poucos minutos depois a segunda ambulância chegou, equipada com desfibrilador. Por mais de quarenta minutos o trabalho intenso dos profissionais de saúde foi cumprido com dedicação, em busca da única coisa que importava agora: trazer de volta o dia de domingo para a vida do homem estendido na calçada.

No decorrer desse tempo, em torno dos médicos e enfermeiros pequenos grupos de pessoas se formavam e se desfaziam, conforme as  obrigações os cobravam ou sua curiosidade era saciada. A moça que passeava o cachorro, o idoso a caminho da padaria, o casal que se dirigia ao culto matinal em alguma igreja próxima, parava observava por alguns instantes, trocavam informações imprecisas e conjecturadas sobre o ocorrido e, depois, continuavam.

Enquanto os paramédicos se revezavam nas manobras de reanimação cardiopulmonar, do outro lado da praça a feira domingueira seguia, com as pessoas vendendo e comprando, discutindo o preço do tomate e o frescor do peixe, alheios ao domingo interrompido, sem aviso ou consideração, na pista de caminhada.

As tentativas de reanimação seguiram por quase uma hora. Nenhum parente ou conhecido do homem apareceu nesse intervalo. Por fim, ele foi colocado em uma das ambulâncias, que partiu em silêncio.

Texto e foto:
Maria D´Arc Hoyer, jornalista

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