A guerra dos pardais não resiste ao grito do bem-te-vi

 

Ninho de rolinha, com filhote, suspenso nos galhos finos de uma pitangueira
Foto: Maria D'Arc

Enquanto preparo o almoço, o cachorro dorme confiante ao pé do armário, alheio aos ruídos familiares do ambiente. O cheiro das ervas, com as quais amo cozinhar, preenche de aromas o ar à minha volta. Hoje, especialmente, o alecrim se destaca, saltitando no azeite quente. Alexa faz ressoar as notas da música “Remember i love you”, de Jim Diamond:

Oh when you feel things going wrong (Quando você sentir que as coisas estão indo mal)
Feel that up to get to no one (Sentindo que não pode contar com ninguém)
Don't be too afraid to fall (Não tenha tanto medo de cair)
It's just a test they've said you it's easy giving in (É só um teste, e disseram que seria fácil você ceder)
The hardest part is to begin again (A parte mais difícil é começar novamente)

Vejo pela janela, no quintal, os pardais a travarem uma luta livre derrubando as folhas da jabuticabeira. Um bem-te-vi se mete no alvoroço e seu grito agudo decreta um milésimo de segundo priorizando o silêncio. Os pardais respeitam e, depois disso, a briga perde o sentido e cada um toma seu rumo.

No silêncio restante, a flor de graviola despenca das alturas esbarrando em folhas e galhos, a espalhar polen que vai se perder sem vingar em fruta. Mas tudo é vida em movimento; os ninhos das rolinhas estão prontos nos galhos da pitangueira e outra vez é primavera.

É primavera e tudo parece certo. Ao menos nesse cantinho do mundo, no quintal que respira paz, na cozinha perfumada com ervas e no cachorro a ressonar tranquilo.

Mundo afora, porém, explodem bombas. Crianças se afogam em mares famintos que engolem barcos que fogem da fome. Cidades inteiras jazem ao rés do chá, arrasadas. Estampidos ceifam vidas nos morros, de gente do bem e do mal; as balas apenas voam e matam, sem escolher a quem. 

Homens que se acreditam poderosos ordenam aos corajosos que sigam para a guerra, enquanto eles próprios se cercam de seguranças e carros blindados. Diante de câmeras discursam justificando o injusticável. Da segurança de seus gabinetes, semeiam a morte e justificam o horror falando de honra ou de Deus, mas nas mesas de negociações o que entra são tarifas comercias, recursos naturais e poder.

No meu quintal a vida, em estado primitivo e puro, resiste; indiferente às idiossincrasias humanas. Trinados estridentes acordam os sentidos. O vento sacode as folhas compondo a música suave dos sussuros. As flores já procuram frestas nos botões para desabrochar. Viver é imperativo. É como se a natureza dissesse: Não ignore as tristezas do mundo, mas sorria. E se a morte da alma vier, renasça como puder. Onde estiver. Com toda a primavera possível. E cante, porque a palavra certa sempre será resistência. E o grito do bem-te-vi nunca deve se calar quando o propósito for colocar fim às brigas irresponsáveis dos pardais.

O almoço fica pronto e Alexa continua a tocar, serenamente em sua vida de gadget espião. Titãs ecoa pela cozinha, trazendo esperança com “Enquanto houver sol”:

Quando não houver saída
Quando não houver mais solução
Ainda há de haver saída
Nenhuma ideia vale uma vida
.”

Mulher grisalha, sorridente, usando óculos de armação preta.
Maria D'Arc é jornalista


 

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