A crueldade do coronavírus rouba mais que vidas


Há poucas semanas uma amiga me ligou pra contar que seu tio de 89 anos havia falecido, de Covid-19, no Rio de Janeiro.

Em nossa conversa, tentando confortá-la, fui percebendo que o que a deixava inconformada ia além da tristeza de perdê-lo. Era o fato de não poder viajar até lá (ela mora em São José dos Campos, como eu), impedida pela quarentena, para se despedir e estar com seus primos.

Ninguém gosta de velórios, mas a gente vai entendendo no decorrer dos anos o quanto eles são importantes. O que há de maior valor do que a vida? Por isso os nascimentos são comemorados e cada aniversário é motivo de festa.

Porque sabemos que a jornada é finita e um dia vai chegar a hora de dizer adeus.

A despedida de um ente querido é como ler o último capítulo de um bom livro. Você pode se acabar em lágrimas, como eu no final de Mar Morto – para mim o melhor livro de Jorge Amado – esperando, em vão, que a vela acesa na cumbuca, deslizando sobre as águas, encontrasse o corpo de Guma.

O livro termina com Lívia suspendendo as velas do Paquete Voador, cortando os mares baianos, escoltada pelo Viajante sem Porto de mestre Manuel. Uma história que apesar de triste se encerra para o leitor com um aceno positivo de renovação.

Chegar ao fim é parte de toda história, mas o ritual da despedida também é.

Creio que esse momento é necessário para que a vida de quem fica possa seguir com alguma esperança. E os abraços dos amigos nessas ocasiões é que nos dão a certeza de não estarmos sós para encarar o 'novo normal' que a morte impõe. 

Assim, de tudo que temos visto desde que a pandemia do coronavírus foi cobrindo o mundo com seu manto escuro e pesado, o que mais me sufoca e assombra é pensar nas despedidas que vêm sendo negadas, proibidas, impossibilitadas.

Encontros e despedidas

Ser confortado ao dizer adeus: é esse direito essencial que o coronavírus tira das pessoas. Fazendo dos caixões lacrados e dos velórios vazios, sem amigos, sem memórias compartilhadas como homenagem entre risos e lágrimas, o lado mais cruel da doença maldita.

Tomara que possamos nos armar de toda empatia possível para quando, enfim chegar a hora, a gente possa levar nossos abraços às pessoas que sepultaram sozinhas seus amados. Que choraram e choram encolhidos, sem afago, sem aperto de mão.

Que nos lembremos disso antes de sair comemorando a volta à vida ‘normal’, pois para quase 28 mil pessoas – hoje, 31 de maio – não existirá volta à vida. 

Para os milhares de famílias afetadas de forma irremediável pela Covid-19 haverá, no entanto, uma pessoa faltando à mesa. Uma comida especial que nunca mais poderão saborear. Um trecho de música cantarolado que nunca mais ouvirão. Um futuro sonhado que não vai se realizar.

Quando enfim pudermos voltar à rotina, que os boletos vencidos possam esperar mais algumas horas, enquanto distribuímos esses abraços estocados involuntariamente.

Como diz Milton Nascimento, “chegar e partir são só dois lados da mesma viagem”, mas um abraço apertado ajuda a aplacar a saudade de quem vai pra nunca mais.


Crônica sobre a tristeza de não velar nossos mortos

Maria D´arc Hoyer é jornalista, teimosa demais e, talvez por isso, insista em acreditar no lado bom da vida.

Foto trilhos: Photo by Gabriel on Unsplash

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