Laranja poncã e divagações em uma manhã de domingo

ensaio evolução humana acomodação e coronavírus

Uma laranja poncã descascada e com os gomos já separados devidamente embalada em uma bandeja de isopor branco, embrulhada com plástico filme transparente, na prateleira de um supermercado, me chamou atenção, há algum tempo. Quando vi aquilo, disse ao meu marido e filho, que me acompanhavam: perdi a fé na humanidade.

Rimos do fato de estarmos tão dependentes de serviços e coisas prontas. A poncã descascada virou piada em família e é sempre lembrada quando um de nós se acomoda evitando fazer alguma tarefa simples.

A gente ri, mas penso que há algo inquietante nisso. Pois, se não queremos mais melecar as mãos com o sumo da casca de uma laranja antes de saboreá-la ou mesmo se não temos tempo para um gesto simples e prazeroso como esse, o que mais será que deixamos de fazer nessas últimas décadas de ‘evolução’?

O quanto estamos dependentes do mercado que nos alimenta enquanto se retroalimenta? Que tipo de vida estivemos construindo nesse ritmo intenso e massivo de produção e consumo de coisas e comportamentos inúteis?

Tantas necessidades vazias de propósito foram incutidas ao senso comum, que, às vezes, é difícil mesmo diferenciar essas 'necessidades' e o que realmente gostamos e precisamos.


E o que isso faz de nós como uma, entre milhões, de espécies na natureza?

Longe de mim renegar os benefícios e facilidades do desenvolvimento tecnológico e da ciência. São conquistas inegáveis da raça humana e nos traz conforto e vidas mais longevas. Mas, talvez seja toda essa evolução tão rápida que nos levou a falsa e perigosa sensação de controle.

Com muita informação disponível e pouco conhecimento acumulado na cachola, passamos a acreditar que podemos tudo. 

Notícias sobre linhas de pesquisa em desenvolvimento apontam que estávamos muito perto de vencer a morte. E os corpos alimentados por litros de smoothie orgânico, esculpidos em academia e expostos no instagram pareciam ser a prova disso.

Não poderíamos estar mais distantes da realidade. No entanto, a deliciosa sensação de controle leva à acomodação. E uma espécie acomodada, na natureza, é tão somente uma presa fácil.

Não estamos sendo castigados por entidades divinas para encarar nossa finitude, por meio de um vírus invisível, que nos encurrala dentro de tocas, ou dentro de uma dose cavalar de ignorância para os que insistem em desafiar o inimigo sem equipamentos de proteção.

O vírus quer apenas o mesmo que nós: sobreviver e não hesita em se transformar, mutar, para atingir seu objetivo, ratificando Darwin até as últimas consequências (ok, eu sei que geneticamente falando não é exatamente isso, mas você entendeu).

Acredito mais que sejamos vítimas da natureza que renegamos há tanto tempo. Insistindo em ignorar que fazemos parte dela. Somos predadores sofisticados com uma capacidade de destruição que desconhece limites. Curiosamente a destruição do nosso próprio habitat. Nunca ouvi falar de outra espécie capaz disso.
 

Até quando o corpo pede um pouco mais de alma, a vida não para

(Lenine)

ensaio evolução humana acomodação e coronavírus

A destruição se faz para alimentar o mercado que se retroalimenta, lembra? Seria esse consumo desesperado uma busca infrutífera para dar concretude à existência? 

Uma parte significativa de nós parece ter embarcado sem pensar no que o filósofo Leandro Karnal definiu como o “projeto de felicidade da classe média”; necessidade que antigamente não existia ou, ao que parece, pelo menos não era essa busca insana.

Os últimos meses parecem apontar que perseguir essa concretude não faz tanto sentido assim. Existir é o que salta aos olhos como importante e real. 

Do jeito que vamos, se algo sobrar da nossa era, talvez seja o intangível das transmissões de ondas de rádio espalhando pelo espaço infinito o que sentimos e pensamos. Coisas que não podemos vestir, tocar, calçar ou comer, mas que, a meu ver, é o que define nossa humanidade.

E, apesar da sensibilidade e humanidade em nós, um olhar mais atento à nossa volta talvez revele que não somos tão diferentes quanto queremos ser da hiena que devora a carcaça da gazela na savana. Institutos básicos nos condenam a comportamentos que podem nos salvar ou nos extinguir, conforme a banda da evolução tocar.

Mesmo quem protesta nas redes sociais contra os que desfilam de carrão pedindo que os trabalhadores voltem para as ruas, estão, em sua maioria, trancados em casa pedindo a comida e o iphone novo por meio de aplicativos. Encomendas que algum trabalhador vai levar até eles, debaixo de chuva, sol e exposto à contaminação. 

Essa conta não fecha. Porque sobreviver é instinto. Darwin sabia disso e você, em algum lugar da sua consciência, também sabe.

Creio que os transhumanistas do Vale do Silício discordariam peremptoriamente de mim, focados em pesquisas e projetos de nanotecnologia que fazem o conceito do filme “Viagem Insólita” (1987) parecer brincadeira de criança e vão relativizando o ser humano em pequenas fusões de máquina e homem. Trapaceando no jogo milenar da evolução biológica.

Na dúvida sobre todas as incertezas do futuro, que pode ser revertido e transformado até por um vírus que a gente nem vê, Fica aqui a proposta: descasque sua própria laranja. Pode ser um recomeço. E recomeçar é sempre a oportunidade de evoluir melhor.



Maria D´Arc Hoyer é jornalista, teimosa demais e, talvez por isso, insista em acreditar no lado bom da vida.


Poncã - Photo by Jonathan Pielmayer on Unsplash
Fiction - Photo by Yoal Desurmont on Unsplash
 

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