Quando o coronavírus se revelou ao planeta os humanos viviam, há um século, sua corrida de ratos entre o ponto inicial e final de suas jornadas individuais, seguindo os roteiros pré-estabelecidos pelo “sistema” (se preferir pode chamar de Matrix).
Desde a Gripe Espanhola - que provavelmente nem espanhola era -, em 1918, a corrida seguiu sem grandes obstáculos, até que a interação humana com algum animal silvestre trouxe o devastador coronavírus para o habitat das pessoas, mas, conforme suas convicções você também pode pensar que ocorreu o contrário.
A questão aqui, no entanto, não é discutir se ele veio até nós ou se fomos até ele, mas sim, como ele afeta a forma como nós vínhamos nos movendo em nosso habitat social.
Passamos muito tempo organizando rotinas como levar os filhos à escola, pegar condução, ir ao trabalho, ir aos restaurantes, cinema, shoppings, com uma agenda absolutamente cheia de afazeres; e consumo.
E nessa agenda, em geral, não havia tempo reservado nem para olhar as tarefas dos filhos. Delegamos isso aos professores. A comida, delegamos aos restaurantes, de preferência de fast food para não perder tempo.
Sem julgamentos, ok? Estávamos todos na mesma corrida de ratos. O termo, para quem não conhece, define a imagem de ratos de laboratório correndo em uma roda indefinidamente. Eles se esforçam todos os dias na corrida sem alcançar o entendimento de que não chegarão a lugar nenhum. Tanto esforço acaba sendo inútil. Esse termo é apresentado no livro Pai Rico, Pai Pobre, caso você fique curioso.
Mas então, veio o coronavírus e a necessidade de nos trancarmos em casa para achatar a tal curva, ou seja, evitar o excesso de pessoas doentes necessitando de atendimento ao mesmo tempo nas redes de saúde.
E muitos tiveram que ficar em casa. E de uma forma que talvez nunca tenha ocorrido antes ficamos de frente para o espelho. Os físicos e os imaginários.
De frente para o espelho
E o que estamos fazendo com isso? Nesse tempo em que somos ‘forçados’ a olhar para a gente mesmo e para os mais próximos de nós?
Arquivo pessoal |
Começa por aí a reflexão da psicóloga Marisa Ricci, cujo trabalho em uma escola particular em São José dos Campos, São Paulo, permite uma visão ampla das relações familiares modernas.
O sociólogo e professor Maurício Vaitsman Chiga segue na mesma linha. “O ‘isolamento’ seria uma nova plataforma de vida, não somente educacional, que servirá para o crescimento emocional e educacional das crianças e adolescentes atuais e quem sabe transformá-los, e a nós adultos também, em gerações que prezem mais a convivência humana sadia e quem sabe tirarmos boas lições de quaisquer momentos atípicos como esse.”
Os dois profissionais também destacam a possibilidade de desenvolvimento pessoal que pode ser aproveitada durante esse período de recolhimento.
“Eu sempre acreditei que experiências são excelentes possibilidades de ganho de conhecimento em qualquer etapa da vida, para mim o desenvolvimento pessoal está intimamente ligado ao que se passa na socialização primária com a família”, reflete Chiga.
Do isolamento individual para o coletivo
Marisa observa que as pessoas já praticavam outras formas de isolamento antes da situação criada pelo coronavírus, ao ficarem “fechadas” no celular, nos jogos de computador; morando em condomínios fechados ou em apartamentos.
Mas, segundo ela, essas formas de isolamento só isolam o ser humano da realidade de saber-se parte da humanidade. “O atual isolamento, ao contrário, nos faz perceber que somos simples mortais, proporciona tempo para reflexão. Poucas vezes o ser humano para e olha pra si mesmo. Estando isolados do convívio social mais intenso, com o mundo todo vivenciando a mesma situação, será inevitável observar a si mesmo e a seus relacionamentos.”
Mas, segundo ela, essas formas de isolamento só isolam o ser humano da realidade de saber-se parte da humanidade. “O atual isolamento, ao contrário, nos faz perceber que somos simples mortais, proporciona tempo para reflexão. Poucas vezes o ser humano para e olha pra si mesmo. Estando isolados do convívio social mais intenso, com o mundo todo vivenciando a mesma situação, será inevitável observar a si mesmo e a seus relacionamentos.”
Enquanto essa proximidade obrigatória pode levantar nos adultos dúvidas sobre as ‘verdades’ pré-estabelecidas dos papéis de companheiros, pais e mães, os jovens e crianças também se confrontam com questionamentos.
“Elas terão que aprender a lidar com o tédio de uma forma criativa. Podem reclamar ou não, mas em suas expressões de afeto positivo ou negativo vão precisar administrar as frustrações e procurar entender as impossibilidades da vida, sem ter a quem culpar.”
A psicóloga acredita que a experiência do isolamento pode abrir a porta para uma oportunidade de conversas em família e revisão de conceitos que regem nossa vida e nossos relacionamentos.
Maurício Chiga também enxerga na situação atual uma possibilidade de crescimento pessoal para todos, que pode levar à valorização do convívio familiar.
“Quando verificamos o que realmente é importante em nossas vidas percebemos que necessitamos de muito pouco da sociedade de consumo extraordinária e sufocante em que vivemos; resta-nos a alimentação e os meios tecnológicos para o trabalho e ou estudos. O resto é supérfluo? Quem decide é o próprio cidadão, mas nosso desenvolvimento pessoal durante e após esses tempos difíceis poderá alterar essa situação.”
Ganhos e perdas do isolamento forçado
As palavras perdas e pandemia na mesma frase remetem automaticamente às irreparáveis perdas humanas. Mas, como sociedade, Chiga acredita que podemos sair da experiência da Covid-19 melhores e mais fortes.
“Na economia, por exemplo, vivemos um momento ímpar de possibilidades inúmeras para tomarmos os rumos econômicos e melhorá-los para outra realidade, que só existirá se assim a desejarmos e a explorarmos.”
Ele coloca que é natural que a humanidade alimente o desejo do fim da pandemia e que outras doenças devastadoras não apareçam, mas diz que, para tornar real essa mudança de rumo, a sociedade precisa consumir menos os recursos naturais e cuidar melhor do meio ambiente para se distanciar da “sociedade de risco” (defendida pelo sociólogo alemão Ulrich Beck – 1986) onde os riscos ambientais são produzidos pela sociedade e comuns para ricos e pobres.
“Ao cuidarmos, por exemplo, dos desmatamentos no Brasil, do nosso consumo familiar de inúmeros produtos desnecessários, da diminuição de gases de efeito estufa, etc, estaremos cuidando do futuro e isso seria um grande ganho retirado dessa situação de pandemia”, avalia Chiga.
Voltando o olhar para indivíduos, Marisa observa que os efeitos psicológicos do isolamento ainda não são claros. “Alguns podem sair desta experiência muito enriquecidos emocionalmente, enquanto outros optarão por permanecer num discurso de lamento e vitimização.”
Ela lembra que desde o início das situações de isolamento vimos pessoas que resistiram e continuaram indo às ruas, mesmo sem necessidade, enquanto outras voltaram a energia para ações de solidariedade e respeito.
“De forma geral, perde-se um pouco da sua auto imagem social, de seu “ser no mundo”, perde-se um pouco a noção de ser parte de uma comunidade maior, perde-se a segurança e onipotência. Alguns perdem a esperança. Podem surgir sentimentos de menos valia, de solidão, medo, insegurança. No entanto, ganha-se no diálogo, na maior convivência com aqueles que amamos. Aprenderemos uma forma nova de viver juntos, de trocar experiências mais profundas, reformular nossos hábitos, aprender coisas novas.”
Para ela, as perdas e ganhos dependerão de como as pessoas irão encarar as suas vivências específicas e como reagirão a elas.
Voltando o olhar para indivíduos, Marisa observa que os efeitos psicológicos do isolamento ainda não são claros. “Alguns podem sair desta experiência muito enriquecidos emocionalmente, enquanto outros optarão por permanecer num discurso de lamento e vitimização.”
Ela lembra que desde o início das situações de isolamento vimos pessoas que resistiram e continuaram indo às ruas, mesmo sem necessidade, enquanto outras voltaram a energia para ações de solidariedade e respeito.
“De forma geral, perde-se um pouco da sua auto imagem social, de seu “ser no mundo”, perde-se um pouco a noção de ser parte de uma comunidade maior, perde-se a segurança e onipotência. Alguns perdem a esperança. Podem surgir sentimentos de menos valia, de solidão, medo, insegurança. No entanto, ganha-se no diálogo, na maior convivência com aqueles que amamos. Aprenderemos uma forma nova de viver juntos, de trocar experiências mais profundas, reformular nossos hábitos, aprender coisas novas.”
Para ela, as perdas e ganhos dependerão de como as pessoas irão encarar as suas vivências específicas e como reagirão a elas.
“Se, para o mundo externo, social, mostramos nossa “persona”, dentro de nossas casas teremos a chance de encararmos nossa própria ‘sombra’. Ninguém sairá deste isolamento sendo a mesma pessoa que era antes” conclui Marisa.
Maria D´arc Hoyer é jornalista e, após décadas vividas, insiste em acreditar no lado bom da vida.
6 Comentários
Parabéns pelo seu trabalho, ótima sensibilidade ao tratar de assuntos pertinentes e cotidianos! Abraços
ResponderExcluirObrigada, Maurício. Sua contribuição para a matéria foi muito relevante. Abç
ExcluirÉ bem relevante o assunto no tocante às pessoas que ignoram o que esta acontecendo, parece até que nada está acontecendo no mundo tão pouco no nosso país! Já sobre a evolução individual, certamente quem souber "aproveitar" este tempo, pode conseguir até uma nova profissão!
ResponderExcluirVerdade, toda reflexão sobre esse momento ímpar da humanidade é importante.
ExcluirEnquanto eu lua esse documentário, fui me analisando e prestando atenção nos pontos da minha mudança de caráter. Fiquei feliz ao perceber que estou indo por um caminho certo. Obrigada.
ResponderExcluirEnquanto eu lia todo esse documentario, fui me analisando e perceber que estou indo por um caminho certo. Obrigada.
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