Verdades tardias

Navio adernado ao lado de paredão de rochas

“A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez.”
Essa é uma das minhas poesias favoritas do grande mestre Drummond. Visão emblemática das perspectivas humanas, tão diversas e incompletas.

Volta e meia reflito sobre essa poesia e, hoje, sábado, pós-registro de 3.600 mortes no Brasil em 24 horas por Covid-19, voltei a ela, enquanto assistia ao filme “Homens de Coragem”, ou no original “USS Indianápolis: Men of Courage”.

Estrelado por Nicholas Cage, o filme conta a saga, verdadeira, de mais de 900 homens a bordo de um navio de guerra, enviado em missão ultrassecreta para a Ásia, em 1945. Em virtude do sigilo da missão, o navio não recebeu escolta e nem mesmo um sonar. Desprotegido, foi obrigado a atravessar o mar japonês infestado de submarinos inimigos e 
tubarões brancos.

A carga chegou ao destino, mas no retorno pra casa o USS Indianápolis foi torpedeado e afundou, levando com ele centenas de vidas de jovens soldados, mortos afogados ou devorados pelos tubarões. As primeiras mensagens de socorro foram ignoradas, pois se a missão não era reconhecida, não havia justificativa para enviar ajuda. 
Apenas um terço da tripulação sobreviveu.

Só bem mais tarde, o comandante Charles Butler McVay descobre que transportava partes da bomba atômica que destruiu Hiroshima e Nagasaki.

Para não prejudicar a imagem do presidente dos EUA, mesmo sendo o responsável pela missão desastrosa, o comandante McVay, embora seguisse ordens militares e não tivesse abandonado seus homens durante a tragédia, foi feito boi de piranha. Sendo julgado e condenado pela perda do navio.

Antes tarde do que nunca, não resolve a vida de ninguém

O resto do mundo só viria a saber muito tempo depois as outras metades da verdade sobre o USS Indianápolis. Mas já era tarde para o comandante.

As meias verdades utilizadas como argamassa para a construção de narrativas políticas covardes têm sido um câncer na humanidade, desde sempre. Mas piorou bastante com o advento da internet e das redes sociais, porque ganharam volume e velocidade assombrosos.

Antigamente, ainda era possível resgatar histórias ouvindo testemunhas, revisando documentos, revisitando lugares. Hoje isso é mais difícil. E, de novo, a culpa é dos excessos. Excesso de ambição, excesso de ignorância, excesso de ingenuidade, excesso de confiança, excessos…

As partes da verdade vistas pela perspectiva de homens de honra e coragem, acabam sendo contadas tardiamente, quando o rumor das hordas capitaneadas por interesses escusos viram ecos do passado.

Essas verdades tardias, apesar de mexerem com nossas emoções, não servem mais para fazer justiça aos injustiçados e nem para corrigir a tempo o curso de navios em rota de colisão com torpedos. Quando elas chegam, os bodes expiatórios já foram executados, física ou moralmente.

E tudo com a permissão tácita de cada um de nós.

Escolhemos as meias verdades que nos deixam mais confortáveis em nosso mundinho; meias verdades que levantam barricadas de proteção às nossas bolhas de sobrevivência medíocres e hipócritas.

Como será a história que a história contará sobre o tempo que vivemos hoje? Quem serão os vilões? Haverá alguém para chamar de ‘mocinho’ quando a poeira da abertura de mais de 300 mil covas baixar?

É impossível terminar sem deixar aqui o resto da poesia de Carlos Drummond de Andrade. Um convite à reflexão. Aproveite.

Verdade

“A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava,
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.


Mulher morena, de cabelos cacheados, usando óculos
Maria D´Arc Hoyer é jornalista


Foto Navio: Photo by Mahir Uysal on Unsplash


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