Mortes por Covid-19 não merecem deboche

 Anjo esculpido em pedra sobre túmulo

Enterrar um parente morto por Covid-19 é uma experiência traumatizante. Aguardar o corpo sem velório chegar ao cemitério, o caixão lacrado, a despedida incompleta.

Observar os coveiros transpirando, em silêncio, com máscaras e roupas de plástico, por cima do uniforme de brim, debaixo do sol ardente de outono é de dar pena.

Pessoas da mesma família, mas que não moram na mesma casa, choram copiosamente sem o conforto de um abraço, enquanto as mãos de quem observa tremem de vontade de consolar.

Nesse Sábado de Aleluia, em São José dos Campos, pela manhã, os carros funerários levavam dois corpos de cada vez aos cemitérios. Embora já tenha acompanhado muitos sepultamentos em minhas décadas de existência, nunca tinha visto isso.

Enquanto aguardam seus entes queridos, o assunto nas minúsculas rodas de conversa entre os parentes se repete incansável: “ainda tem gente que não acredita; ainda tem pessoas se aglomerando”.

O negacionismo estúpido e estimulado vai continuar matando e não é possível que continuemos calados, porque quem cala consente.

As tristes narrativas criadas por mentes turvas

Poucos dias atrás me deparei, pela enésima vez, com alguém comentando no post de uma amiga, no Facebook: ‑ ‘Agora ninguém morre de outra coisa, só de Covid, para encher os bolsos de prefeitos e governadores’. E insinuava que os números são forjados.

Não é uma transcrição literal do comentário, mas certamente você já leu um desses. Estão por aí, disseminados nos perfis de pessoas de aparência simpática e honrada, como minas terrestres enterradas em uma praia de areia branquinha.

São as tias e tiozões da internet, que adotam as narrativas absurdas recebidas pelo aplicativo de mensagens como se houvessem nascido deles. Ok, é preciso reconhecer que mesmo que não tenham criado a narrativa eles a cultivaram em suas mentes obscurecidas pelo desamor. Então, têm crédito e culpa por espalhar mentiras.

De volta à frase desrespeitosa, irônica e debochada (agora ninguém morre de outra coisa, etc), e lembrando que políticos sem vergonha podem mesmo se aproveitar da situação para desvio de verba, mas cabe ao Estado fiscalizar e punir, vamos aos números.

Sim, as pessoas morrem de outras doenças

Segundo a Sociedade Brasileira de Cardiologia, 1.100 pessoas, em média, morrem todos os dias vítimas de doenças cardiovasculares. Fazendo uma conta simples, com 1.100 mortos por dia, em doze meses a soma chega a 401.500 pessoas, mortas por doenças do coração.

Outra conta dolorida revela que cerca de 260 mil pessoas perderam a vida em 2020 para o câncer. O que daria uma média diária de 712 pessoas. Os números sobre câncer são de um artigo médico publicado no site do Real Instituto de Oncologia e Hematologia, do Recife.

A Covid-19 tem ceifado uma média de 3.117 vidas por dia, considerando os dados dos últimos 7 dias de março. Ou seja, em 12 meses o total de mortos seria de 1.137.705. Isso mesmo, mais de um milhão e cem mil pessoas. 

Este número é quase três vezes o número de mortos por doenças ligadas ao coração.

Este número é mais de quatro vezes o número de mortes por câncer.

Para encerrar as estatísticas tristes, o número de mortes por homicídios foi de 43.892 em 2020, com aumento de 5% em relação a 2019. Os dados são do portal de notícias G 1.

Caso você ainda tenha disposição para esse tipo de debate, fale sobre esses números ao negacionista que te afrontar com essa ironia triste e macabra. Sem um pingo de consideração por milhares de pessoas que choram seus mortos ou perdem o sono sem poder visitar entes queridos isolados em hospitais, à espera de leitos de UTI ou de ar para respirar.

Fica aqui um conselho: se, caridosamente, você oferecer a informação e não receber pelo menos respeito em troca, delete o energúmeno da sua rede social e, se possível, da sua vida. Conviver com uma criatura assim ninguém merece!

Maria D´Arc Hoyer é jornalista

 

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2 Comentários

  1. Perfeito Darc. Esse debate está interditado, pois tudo fica extremado e partidarizado. Continue com suas causas e reflexões. Acredito que ainda venceremos.

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    1. Pois é, Saulo. Parece que as pessoas não reconhecem mais uns aos outros como seres humanos. É mais fácil escolher um 'lado' do que pensar por conta própria e buscar soluções coletivas. :(

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