Qual número de mortes é aceitável para você?

ilustração com número 400 e uma vela acesa

Eu nunca me conformei com a frieza dos números estatísticos quando o assunto é perda de vidas. Claro que eu entendo, racionalmente, que a morte faz parte do ciclo de existência que chamamos de vida. Mas, meu coração é um estúpido sem racionalidade alguma. E, para ele, não existe um número de mortes aceitável e justificável que possa se sujeitar à frieza da matemática.

Pra minha sorte, não se conformar facilmente é uma boa característica para um repórter. No início da minha história profissional, em 1.990 e lá vai fumaça, fui encarregada de escrever reportagem sobre um surto de meningite em São José dos Campos. Na época, cerca de 4 crianças haviam morrido com a doença, na cidade.

Eu cobria bastante a área de saúde, trabalhando no caderno regional da Folha de S.Paulo, e fui entrevistar um médico da vigilância epidemiológica.

Muito atencioso e paciente com a repórter novata, ele me mostrou tabelas, gráficos e falou bastante para explicar que o número de crianças mortas, estava dentro de uma taxa aceitável para a letalidade dessa doença, portanto, não havia motivo para grande preocupação. Tudo estava sob controle.

Voltei para a redação e escrevi meu texto, informativo, relatando os fatos, mas, internamente, inconformada ao pensar que aquelas 4 crianças não eram apenas números para seus pais. Que essas perdas, consideradas aceitáveis, com certeza haviam destruído o mundo de várias pessoas.

Quase 30 anos depois dessa experiência, sigo inconformada com muita coisa e o número de 406 mil mortes, hoje, por Covid-19 no Brasil, não cabe na minha cabeça. Seria esse um número estatisticamente aceitável? Para quem?

Vamos falar de números, embora eu não goste muito deles

Com 37,59 milhões de habitantes, o Canadá registrou até o final de abril 1,23 milhões de casos de Covid-19. Isso representa 3,2% da população. Tendo descoberto o primeiro caso em 25 de janeiro de 2020, o país somou até o último mês de abril  24.257 mortes.

O primeiro caso oficial no Brasil foi no final de fevereiro de 2020. Desde então, o país registrou 14,7 milhões de casos, ou 6,9% da população de 213 milhões de pessoas. Cerca de três meses depois do primeiro registro oficial de caso, no final de maio de 2020, 24.111 óbitos já eram contabilizados.

A comparação com o Canadá foi feita, porque, há um ano, em 2 de maio, publiquei o primeiro texto, aqui no blog, sobre coronavírus e o isolamento social e uma das histórias que contamos foi sobre a experiência da Fernanda Akemi Shimada com as restrições naquele país para contenção do vírus. No próximo post vamos contar como foi o ano dela, em Toronto. 

Em 2 de maio do ano passado, a OMS (Organização Mundial de Saúde), contabilizava no mundo todo quase 200 mil mortes.

No Brasil, estávamos perto das 7 mil mortes. Número que foi multiplicado por 3 em menos de 30 dias e daí em diante, seguimos em uma progressão geométrica crescente e macabra.

Progressão irresponsável que trouxe o país, hoje, à marca de 406 mil mortes. É quase impossível encontrar alguém que não tenha perdido um parente ou amigo para a Covid-19.

Enquanto isso, no país do faz de conta...

Pessoa sentada na rua, abraçada aos joelhos, perto de lixo

Enquanto isso, no país do faz de conta que a doença não existe, a imprensa segue noticiando falta de insumos para vacinas (yes, nós temos vacinas, ou poderíamos ter); falta de oxigênio em hospitais, falta de vagas em UTIs, falta de alimento nas mesas dos mais pobres...

Enquanto isso, no país do faz de conta que a doença não existe, os políticos formam CPIs para investigar e, quem sabe um dia, concluir se houve erro por parte do Executivo no combate à crise sanitária que assola o país. Será?

Será que algo mais poderia ter sido feito para conter o avanço implacável da pandemia?

406.000 não é só um número. Esses algarismos tentam conter na frieza da estatística a tristeza de milhões de vidas destruídas.

Enquanto a CPI ensaia os primeiros passos, com seus discursos da velha política - ou de políticos velhos - pensando em reeleições e o governo se dedica ao combate dos dragões que a investigação pode chocar no seu quintal, a morte avança produzindo fantasmas vivos, como os órfãos da covid-19, que já assombram as entidades que atendem crianças e adolescentes.

O Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) aponta a existência de 45 mil órfãos em razão da Covid. Número que deve crescer e vai pressionar um sistema de atendimento já distante do ideal. Evasão escolar, violência doméstica, trabalho e prostituição infantil são outras questões que podem tomar um vulto ainda mais assustador para essa população de desvalidos.

“Crianças e adolescentes não são as principais vítimas diretas da pandemia, não são as principais a morrer em razão da letalidade do vírus, mas são as principais vítimas indiretas da crise econômica, social, sanitária e humanitária, da suspensão das aulas, das creches. São as principais vítimas no que diz respeito à morte dos seus pais, avós e responsáveis legais”

São as palavras do advogado do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Ariel Alves, em matéria publicada no site da Agência Brasil. O texto completo pode ser lido aqui.

Nem vamos falar dos idosos mortos de Covid, cujas rendas eram arrimo de família, porque o texto precisa ter fim. Você, que leu até aqui, já percebeu quantas vidas são afetadas por uma estatística ‘simples’ de números de mortos?

Esqueça o sonho de que a vida vai voltar ao normal. Não existe normal, novo ou velho, no horizonte visível. O que existe pela frente, a continuar dessa forma, é a miséria infinita. As ruas cada vez mais cheias de pessoas abandonadas à própria sorte, sem que tenham recebido preparo sócio educacional para que sequer percebam porque estão naquela situação. Serão apenas uma massa disforme de pessoas sem rosto, transformadas em estatísticas nefastas.

Estatísticas que seguirão debatidas, interminavelmente, por homens e mulheres, eleitos, apegados aos seus cargos, no conforto do ar condicionado de seus gabinetes, bem nutridos pelas benesses dos impostos de uma sociedade que, sem sair do lugar, caminha satisfeita, a passos largos, para um abismo social sem retorno. 

Eu não me conformo com as mais de 400 mil mortes por Covid-19 e todas as consequências trágicas que esse número traz.

E você?

Maria D´Arc Hoyer é jornalista



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