Eu, minha mãe, a missa, a vida

Mulher loira, cabelos lisos na altura dos ombros, com cabeça encostada em mulher idosa, com cabelos curtos e loiros. As duas estão sorrindo.
Foto: Arquivo pessoal, Edna Petri

Lembro que quando era pequena, acho que por volta dos meus 6, 7 anos de idade, minha mãe me levava à missa todos os domingos. Eu confesso que não era o melhor dos programas. A parte que mais gostava era a cantoria dos hinos e amava a frase: “vão em paz e que o senhor vos acompanhe”, porque sabia que a missa tinha chegado ao fim.

Durante a missa era comum eu ficar focando os santos em seus nichos e conversar mentalmente com cada um deles. Tínhamos altos papos, porque na minha cabeça eles respondiam a todas as minhas perguntas.

Também ficava olhando aquela cruz com Jesus pregado nela, no meio do altar, e pensar como aquilo devia ter sido dolorido para ele e sempre tive vontade de pedir para alguém tirar ele de lá, ou, ao menos, tirar a cruz daquele altar pra gente não ficar vendo aquilo.

Desde pequeninha eu nunca gostei de ver Cristo na cruz, e nem cheio de sangue. Gostava de ver a imagem dele meio que sorrindo e abençoando a gente. Aí sim! Sempre que via uma imagem dessas mandava beijinhos pra Jesus, aliás, acho que mentalmente faço isso até hoje.

Minha mãe “menina”

Enfim, o tempo passou – digamos que... bastante – e agora quando vou visitar minha mãe, a dona Zulmira, que mora em outra cidade, sou eu quem a levo à missa. E esse tempo que passou deixou minha mãe muito mais “menina”, por assim dizer, e agora eu me vejo nela, e vejo ela em mim, durante toda a missa.

É comum ela se distrair e começar a falar de outras coisas, às vezes em voz alta, e eu tenho que lembrá-la de que estamos na missa. E faço isso sorrindo, porque ela fazia assim comigo.

E se tiver uma criança no banco da frente, esquece a missa. D. Zulmira fica encarando a criança e dando oi com a mão, sorri com os olhos (já que as bocas andam escondidas nas máscaras), como que querendo chamar a atenção. De repente lembra que está na missa e disfarça.

Quando chega a hora do ofertório, momento em que as pessoas passam recolhendo dinheiro em sacolinhas, ela já me pede o dinheiro porque é ela quem quer colocar na sacolinha, igualzinho eu fazia.

E também adora a cantoria. Canta todas as músicas, só que, diferente de mim, que berrava pra igreja toda ouvir fazendo ela passar a maior vergonha, ela faz isso de forma discreta...graças a Deus.

Percebo também que durante a missa ela adora ficar de mãos dadas, às vezes bem juntinha, e confesso que nessa hora eu me aproveito muito.

Abraço ela feito criança e coloco ela bem juntinho de mim, abraçadinha, agarradinha. Ela gosta e fica quietinha, até achar alguma coisa que rouba a sua atenção.

- Tá vendo aquela mulher alí? - Pergunta.

E eu respondo baixinho, disfarçando: - sim.

- Ela sempre sentava ao meu lado na missa.

Digo que acho legal e ela insiste em cumprimentar a pessoa levantando a mão e acenando. A pessoa não entende direito, mas devolve o cumprimento. Eu também fazia isso quando era criança. Se achava alguém interessante, mesmo que não conhecesse, acenava com a mão e minha mãe ficava super sem graça.

Como viemos parar aqui?

Todas as vezes que saímos da missa e vamos andando bem devagarinho até a sua casa, ela se confunde e acha que estava numa igreja próxima à minha casa, que fica em outra cidade.

Outro dia encontrou uma amiga e ficou espantada em saber que ela também estava naquele bairro. Percebi a confusão e fui conversando, disfarçando até ela perceber que aquele era o bairro da casa dela.

Daí ela me perguntou: como é que a gente saiu da sua igreja e viemos parar aqui? E eu vou recordando tudo o que aconteceu desde a hora que cheguei na casa dela até aquele momento e ela fica super sem graça de ter esquecido, e acaba se cobrando muito por isso. Eu digo que é normal, que estamos todos muito esquecidos.

Mas a verdade é que essa pandemia colaborou muito para que a minha mãe se tornasse mais “menina”. Ela tinha alguns afazeres semanais como jogar um bingo, se reunir com as amigas para tomar um café e ir à missa todos os domingos, além das visitas de filhos, netos e parentes. De repente, tudo isso desapareceu da sua vida e ela foi obrigada a permanecer sozinha em sua casa.

Mesmo com os filhos ligando até duas vezes por dia, meu irmão passando lá todos os dias, ela perdeu muito de um mundo que era só dela e que fazia ela ser quem era. Isso colaborou para ela se perder de vez em quando no tempo e no espaço.

E ela acaba fazendo várias vezes a mesma pergunta se confundindo com alguns parentes e amigos, mas o que mais me dói é ela esquecer e depois lembrar que meu pai faleceu. Ela fica triste, os olhos cheios de lágrimas e quando ela vai lembrando de tudo, se recompõe e se fortalece novamente. Que exercício ingrato, meu Deus!

Um dia de cada vez

Mas a vida é assim mesmo. Um eterno exercício de nos colocarmos de pé todos os dias pela manhã e darmos graças, porque é mais uma oportunidade de aprendizado, de crescimento.

De nos tornarmos pais e mães daquela que um dia foi nossa mãe, como fazemos hoje, eu e meus irmãos. De segurar na mão dela e dizer: calma, estou aqui, exatamente como ela fazia com a gente.

Apesar que a minha mãe nunca foi aquele tipo de mãe paciente e cheia de “mimimi”. Se eu me lembro bem ela falava perguntando: vai parar com essa frescura ou eu vou ter que ir aí?

Mesmo com toda essa “meiguice” a gente sabia que ela estava lá, aliás, sempre esteve... E no fundo, no fundo, eu e meus irmãos adorávamos esse jeito Fiona dela ser, crescemos vendo ela assim, repleta de garra.

O problema agora é dissociar a imagem de guerreira, dessa “menina” em que ela se transformou.

Mas vamos indo, um dia de cada vez. Na verdade: Vamos em paz e que o senhor nos acompanhe. Amém!

Mulher loira, de meia idade, cabelos tamanho médio, sorrindo
Edna Petri é jornalista

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