No fim de muitos caminhos falta uma rampa de acesso

Cadeira de rodas empacada no meio fio da calçada
Praça das Árvores, no Jardim São Jorge, região da Vila Tesouro

Empatia é definida em dicionário como a capacidade de imaginar-se no lugar de outra pessoa, de compreender os sentimentos do outro. Tenho pra mim que essa é uma das práticas mais difíceis da vida.

Os compromisso, os boletos para pagar, os prazos a cumprir engolem muito da percepção que poderíamos ter sobre o que existe e ocorre a nossa volta e como isso impacta a vida dos semelhantes.

Os caminhos não são iguais para todos, mas podemos contribuir para ajudar outros a percorrer os trajetos mais acidentados. As administrações públicas, principalmente, quando o assunto é caminhos concretos, sem subjetividade. As trilhas incompletas e acidentadas que barram a circulação de quem depende de uma cadeira de rodas, por exemplo.

Estamos em uma das cidades melhor equipadas no país para essa parcela da população. Mesmo assim, no dia da eleição do segundo turno para Presidente - dia 30 de outubro - me deparei com um desses momentos em que a empatia pega a gente pelas orelhas e nos apresenta a vida pelo olhar do outro.

Eu e meu filho decidimos ir a pé até o local de votação. Uma caminhada de uns 20 minutos, para evitar o transtorno de procurar vagas de estacionamento em dia de eleição, até a escola cujo nome é quase um trava-língua, Ilga Pusplatais, onde passei alguns dos melhores anos escolares da minha vida. 

Em nosso trajeto, atravessamos o passeio da Praça das Árvores, que desemboca na Rua Bento Pinto da Cunha. O chão estava forrado de mangas verdes e galhos derrubados pela tempestade da noite anterior. À nossa frente um casal jovem e um garotinho de uns quatro anos. O rapaz seguia em uma cadeira de rodas. Passamos por eles no final do passeio e poucos passos depois fomos parados pelo chamado dele. — Moço, você pode dar uma força aqui?

O final do passeio não tem rampa. Mesmo equipado com uma cadeira bastante moderna, ele não podia atravessar a rua sem ajuda.

Nossa falta de habilidade é tanta com essas situações que, preciso confessar, ajudamos a descer a cadeira e seguimos caminho até o outro lado da rua. Só então caiu a ficha: ele ia precisar subir a calçada do outro lado. Também não tem rampa.

Voltamos, ajudamos o rapaz a acessar a calçada e seguimos juntos, conversando. Meu cérebro deixou de lado a preocupação com a eleição e minha empatia, finalmente, deu o ar da graça.

Comentei com ele sobre o absurdo de não ter as rampas naquele cruzamento. Bem ali, via de acesso a duas escolas e ao centro poliesportivo. Ele foi rápido na resposta, pois, com certeza, está habituado a situações parecidas.

— Você sempre passou por ali e não percebeu. Mas, hoje, viu o caminho pela minha perspectiva. Foi como se estivesse na cadeira de rodas.

Rapaz em cadeira de rodas ao lado de calçada sem rampa de acesso
Thales Roberto no cruzamento das ruas Bento Pinto da Cunha com Rua Vicente Mota Corrêa: sem rampas de acesso

A conversa continuou e nos apresentamos. A mulher se chama Alexsandra Bezerra, o garotinho é o Thomas Roberto e Thales Roberto é paratleta da natação de nível nacional e representa São José dos Campos-SP em muitos campeonatos. Mais recentemente, concorre a novo desafio: integrar uma equipe de surf adaptado.

Ou seja, tem energia de viver, disposição para a prática de esportes, melhor preparo físico do que muitas pessoas sem deficiência física, uma cadeira motorizada e, ainda assim, é barrado por um meio fio de calçada sem rebaixamento, na capital do avião.

Voltando da votação, nos reencontramos em frente ao poliesportivo da Vila Tesouro. Eu jornalista, ele além de paratleta é palestrante, então, não faltou assunto, mesmo debaixo de um sol escaldante. Cidadania é coisa que se deve praticar todo dia e toda hora. É o que estávamos fazendo ao discutirmos acessibilidade.

Thales aproveitou para mostrar o estado precário dos rebaixamentos de guia no acesso ao centro de esportes. Sinalização do local não existe. Trincas e buracos exigem manobras arriscadas, mesmo para uma cadeira elétrica. Situações que, junto com a família, ele enfrenta sorrindo, mas não conformado.

Cadeira de rodas em calçada com buracos Rapaz em cadeira de rodas desce calçada cheia de buracos

É verdade que muita coisa avançou em termos de acessibilidade, nos últimos anos. Mas uma vez identificada essa necessidade social, não dava pra ser mais rápido esse cuidado? Mapear praças e ruas e fazer um mutirão de obras de acessibilidade, especialmente nos locais próximos às escolas, centros comunitários e esportivos, não pode ser tão difícil.

Como diziam alguns candidatos em campanha: ‘Prefeitura, dá um Google aí’ e confere esses locais espalhados fora da região central. Sou capaz de apostar que isso não ocorre apenas na Vila Tesouro.

Homem em cadeira de rodas, tendo ao lado uma mulher e uma criança pequena
Thales, Alexsandra e o pequeno Thomas: sorrindo tudo fica mais fácil

E não deve custar tão caro assim rebaixar essas guias e colocar os sinais táteis para pessoas com deficiência visual. Se bobear, pode render até algum capital político para quem levar um projeto desses adiante. As pessoas com deficiência votam. O Thales foi à urna no dia 30 de outubro. Apesar da falta de rampa de acesso pelo caminho, ele foi. Porque, em suas próprias palavras, “o sistema é que é deficiente, não eu”. 

De minha parte, só agradeço esse rápido encontro, no qual ele nos ajudou a ver melhor os caminhos por onde andamos. E se quiser saber mais sobre o Thales, pode segui-lo por aqui: @thalesrobertoparatleta 

Mulher, grisalha, usando óculos
Maria D´Arc é jornalista


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