Três pais e uma filha

homem carrega menina em bagageiro de bicicleta em estrada cercada de vegetação

— Este ano ela não passa de ano.
— Será? Mas também nem dá pra cobrar. Trocar de escola três vezes no ano não é fácil.
Com uma palavra a mais ou a menos, era esse o teor da conversa que eu ouvia lá do meu cantinho de criança invisível. Porque as crianças são invisíveis para os adultos muitas vezes. Por isso, invisível em meu canto, parecendo ocupada apenas com meus brinquedos eu ouvia minha madrinha e minha mãe debaterem minha capacidade de passar - ou não - do terceiro para o quarto ano primário, que é o fundamental de hoje em dia.

Então, a criança invisível foi surpreendida pelo vozeirão que raramente se fazia ouvir na casa: — Deixem de besteira. A D'Arc não repete de ano. A menina é inteligente.
E a menina que já murchava em seu canto dando como certa a derrota estudantil, foi sacudida pelo vozeirão e agarrou pela beca o brio que quase lhe escapara após as palavras de conformismo. Armada com esse brio garantiu boas notas nas provas finais e passou de ano.

O dono do vozeirão e pouca prosa era meu padrinho, José. Me lembro também de uma época em que precisamos nos mudar para longe da escola e as aulas terminavam quase à noite. Todos os dias ele ia me buscar na saída. De bicicleta, me levava pra casa em segurança. E depois voltava à sua casa que era perto da escola. Ele falava pouco mas, decerto, observava a determinação na menininha de cabelos crespos, sempre repuxados e contidos por maria-chiquinhas, blusa de branco impecável e conga azul marinho. E talvez intuísse que reprovações não eram a praia dela, embora tenha enfrentado muitas ao longo dos anos. Ninguém escapa. Meu padrinho José foi meu segundo pai.

O primeiro pai que tive foi meu "vô", Vicente, por quem guardo desde sempre uma admiração profunda. Homem rude do sertão de Pernambuco, com quase nenhum estudo, mas sábio e complacente. Décadas atrás, numa época em que era comum tomar decisões para atender aos costumes, ele recebeu de volta sob seu teto uma filha grávida, fugida de um casamento em que se sentiu ameaçada. Atitude incomum para a época. Situação que naquele tempo poderia representar desonra para a família. 

Na barriga da filha do "seu" Vicente estava eu. Minha mãe tinha apenas 19 anos e nem posso imaginar quão mais difícil teria sido a vida de nós duas se ele não abrisse o coração e a porta de casa. Por esse avô, que passei a chamar de pai, fui criada com muito amor até os 7 anos de idade, quando ele partiu.

Meu terceiro pai, aquele que ficou para trás no casamento desfeito, chegou por último no roteiro da minha existência. Quando alguém reencontra um pai após 50 anos não faz ideia do que vai enfrentar. Indo ao encontro do meu, a três mil quilômetros de distância, oito anos atrás, eu não pensava em nada, não fazia projeções. Criar expectativas é perigoso. Sabia somente que ele havia se casado de novo, tido outras quatro filhas e sua saúde andava frágil.

Uma vez lá, vi um velho homem apoiado em uma bengala descer do carro e me envolver em um abraço que parecia querer compensar as cinco décadas perdidas. Um velho homem que chorava e parecia não acreditar que eu estava ali. Conversamos muito na varanda da casa da minha tia. Ou melhor, ele falou muito. Tinha urgência em contar sua história e a história dele era igual a que minha mãe sempre contou. Ele não mudou nada para tentar parecer uma pessoa melhor. Pelo contrário, se condenou ainda mais, talvez por culpa. Mas falou também do quanto me procurou, de como falava de mim para as minhas irmãs que, de fato, sabiam da minha existência.

Depois disso, ele passou a me telefonar quase todos os domingos, às 9 horas da manhã e conversávamos por um bom tempo. Amenidades. Falava das suas comidas preferidas, do que havia comprado na feira. Perguntava sobre coisas da minha vida e contava também algumas de suas estripulias de juventude.

Deus escreve certo por linhas retas, nunca tortas. Sei que nos encontramos na hora perfeita, quando o perdão fazia todo sentido para nós dois.

Meu pai Sebastião se foi dois anos após nosso reencontro. Meu padrinho José havia se despedido um mês depois que eu encontrei meu pai biológico. Ao contar isso ao meu padrinho, enquanto lhe fazia companhia sentada ao lado do seu leito no hospital, pude perceber que a notícia o surpreendeu. No dia seguinte ele morreu.

Pensar sobre o Dia dos Pais, hoje, me levou a refletir sobre os presentes que todos eles me deixaram. Coisas essenciais como a importância de ter confiança, compromisso, dar apoio, capacidade de perdoar e coragem para pedir perdão. Com eles aprendi que uma palavra, um gesto ou um abraço na hora certa podem mudar uma vida.

E precisa de uma vida inteira para juntar e entender todas as peças que nos entregam as pessoas que nos amam. Pode demorar para vermos o desenho completo. E os pais quase sempre amam em silêncio; não costumam ser bons com as palavras.

Essas memórias me arracaram algumas lágrimas, enquanto escrevia e decidia se publicava ou não. Por fim, pensei: que presente pode ser melhor do que ser lembrado pelo que fizemos de bom? Em vida eu lhes dei meus abraços sinceros, agora ofereço minha homenagem pública e gratidão eterna aos meus três pais.
Foto acima: by Divyanshi Verma on Unsplash

Mulher de cabelos cacheados, grisalhos, usando óculos
Maria D'Arc é jornalista


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