Dia de Finados

Vista geral de cemitério, com pessoas caminhando entre túmulos e um cruzeiro em primeiro plano

O calor mormacento de um sol indeciso criava a sugestão de efeitos ectoplásmicos com a quentura a emanar das lápides mais reluzentes. As murtas, que ladeiam as alamedas, abafavam o burburinho das pessoas a subir e descer o caminho carregadas com baldes, rodos e vassouras. Casais jovens, casais idosos, mães com filhos adolescentes, alguns sozinhos. Vez ou outra uma voz se levantava chamando a atenção do parceiro de trabalho, pedindo por mais água. Logo na entrada uma menina e um garoto ofereciam seus serviços de limpeza por alguns trocados.

A falta de água no começo da manhã de segunda-feira atrasou o trabalho, concentrando perto da hora do almoço um número maior de pessoas dedicadas à limpeza dos túmulos dos entes queridos no Cemitério Maria Peregrina. É o início da semana do Dia de Finados, feriado dedicado à memória dos mortos; mas o movimento nos cemitérios começa vários dias antes. Alguns antecipam por não desejarem se acotovelar em multidões no dia 2 de novembro, outros para aproveitarem a folga com a família na praia e outros, talvez, como a minha mãe, apenas para limpar o túmulo antes que o local fique cheio de visitantes. 

Confesso que nunca fui muito ligada a essa tarefa. Na minha profissão os feriados eram quase sinônimo de plantão. Assim, eu deixava a terceiros a missão de acompanhar minha mãe na visita ao túmulo dos meus avós. 

Por mais de três décadas foram apenas os dois a descansar lá no cemitério Maria Peregrina, a ‘Nega-do-Saco’, que ninguém sabe de onde veio e passou cerca de duas décadas a mendigar na região norte de São José dos Campos. Ela morreu no início de 1964, debaixo de árvores que foram sua morada em seus últimos anos. Hoje, há quem diga que Peregrina opera milagres e seu túmulo é um dos mais visitados no cemitério que leva seu nome.

Já não faço plantões e, atualmente, eu e minha mãe vamos juntas ao cemitério. Ela faz questão de lavar e enxugar para evitar que a poeira se acumule rápido. Acha importante que no Dia de Finados, quando o cemitério estiver cheio, o jazigo não pareça abandonado. É como preparar a casa para receber visitas. Lembra que minha avó - a mãe dela - gostava de ver tudo muito limpo e, por isso, é preciso caprichar.

Carregamos água nos baldes, lavamos, enxugamos e admiramos nosso singelo trabalho com satisfação. Imaginando que nossos queridos ficam felizes em ser lembrados e, de alguma forma, ainda cuidados. Mas é bem possível que isso sirva mais para que nós, os vivos, possamos acalentar nossos desejos de eternidade e reencontro.

Meus avós não estão mais sozinhos no jazigo. Hoje, duas filhas, um genro e uma netinha lhes fazem companhia no pequeno panteão da memória da minha família. A insistência da minha mãe em manter o local conservado e limpo e fazer visitas, no mínimo, anuais finalmente alcançaram minha atenção e compromisso.

Enquanto ela rezava, fui caminhar por perto e fotografar um bem-te-vi pirata que saltitava, entre os túmulos de crianças, se fartando de formigas. O mormaço fazia escorrer fios de suor pelas minhas costas, mas eu estava em paz. Pensei sobre as tantas pessoas que não posso mais abraçar, consciente da finitude de tudo e todos. Ciente de que essa efemeridade torna cada segundo precioso e faz com que esse tributo em dois de novembro seja tão significativo. 

Fiquei lá, apreciando o burburinho das pessoas, ouvindo o borbulhar da água enchendo baldes, o voejar dos pássaros e o zumbir de abelhas nas flores. Pensando na oferta de serviço da jovem dupla, na entrada, que aproveita a data para ganhar um dinheirinho; observando o vai e vem dos funcionários do cemitério consertando, pintando, varrendo. No Finados, mesmo no cemitério, o que prevalece é a vida.

Mulher grisalha, com cabelos cacheados e usando óculos
Maria D'Arc é jornalista




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