Às mães da minha vida

Crônica sobre mães, suas qualidades e as heranças de caráter de deixam nos filhos
Eu e mamãe. O tempo passou pra nós duas. Essa foto tem 10 anos, mas foi um dia muito bom. Foto: Hiroshi Hoyer

Venho de várias gerações de mulheres fortes e todas elas mães, de muitos ou poucos filhos. Cada uma a seu modo, com sua característica ou super poder particular. Sim, as mães são heroínas e, como tal, têm também seus pontos fracos. Aqueles que precisam esconder dos inimigos, porque ser forte é condição essencial para proteger as crias tão amadas.

E, de alguma forma, em família os super poderes se unem para forjar as próximas mães. Hoje, tenho claro em mim que não fui criada e formada somente por minha mãe. Apenas ela ainda segue comigo, em presença física, mas várias outras mulheres da minha vida são parte indivisível do que me tornei e a mim cabe honrar da melhor forma o legado recebido.

Em minha mãe reconheço a resiliência como super poder. Amara não é mulher de muitos sorrisos, nem de sutilezas. E dizem na família que já nasceu introspectiva. Avessa às festas desde a adolescência, resume sua preferência por solidão em uma frase: "pra mim, mais de 5 pessoas é multidão". E de multidões ela está fora.

Com ela aprendi que não há nada no mundo pior que a mentira. Que é importante fazer direito o que se decide fazer, mas que seus próprios limites devem ser respeitados. Traduzindo: não permita que pisem nos seus calos. Se acontecer, recolha sua dignidade e caia fora, sem olhar para trás, sem voltar atrás, nunca mais. Aos 75 anos, continua firme em suas convicções.

Para algumas dessas lições não fui boa aluna. Creio que tenho coração mole, acredito no perdão e em uma boa conversa para resolver as coisas e, às vezes, voltar ao começo e fazer diferente.

E acho que está tranquilo, pois penso que faz parte do processo de crescimento modelar nosso jeito de ser a partir do material recebido das pessoas que fazem parte, mesmo, da nossa jornada. E eu me esforço todos os dias para fazer o melhor com tudo que recebi, mesmo que nem sempre consiga. 



Sertão nordestino, Roberto Carlos e queijadinhas

Focada em suprir as necessidades de uma filha - no caso, eu - minha mãe e sua resiliência se jogaram de corpo e alma no trabalho de subsistência.

Enquanto isso, eu ganhava a oportunidade de conviver com minha avó materna, D. Luiza. A matriarca, mãe biológica de 14 filhos, dos quais apenas 9 chegaram a vida adulta. Ela foi ainda mãe adotiva de mais uma.

D. Luiza foi mãe no sertão nordestino, de fazer a mudança da família em lombo de burros e repartir um ovo para alimentar quatro crianças. E não é possível fazer nada disso sem muita força e resignação.

Mais tarde, na adolescência, quando tudo está em ebulição dentro da gente, minha referência foi uma mulher que, a despeito de todas as adversidades e obstáculos para criar cinco filhos com um pai ausente, sabia sorrir com vontade e tinha uma urgência de viver e ser feliz, contra tudo e todos.

Com a vida difícil embalada pelas canções de Roberto Carlos, era a tia confidente, do tipo que ouvia e ensinava sem cobrança, sem julgamento. E Maria José, a tia Zezé, tinha razão em sua urgência. Partiu cedo, aos quarenta e poucos anos, de forma rápida e inesperada.

Minha madrinha de batismo, Maria dos Anjos, a 'Tia Dusanjos', esteve presente desde o início da minha vida, mas eu só fui perceber tudo que ela me deixava de herança já na minha maturidade e no crepúsculo dela, ao acompanhar de muito perto a luta silenciosa e valente contra o câncer devastador.

Nem toda a dor do mundo fez com que ela deixasse de oferecer ao menos um sorriso a quem dela se aproximasse. Já que naqueles últimos dias não podia mais oferecer rocambole de coco, queijadinhas ou doce de abóbora. O melhor que já comi na vida e que ela reservava pra mim em potes de vidro, que me aguardavam por dias até que eu tivesse tempo para ir buscar.

A capacidade de doação era seu super poder. Sua palavra era sempre ‘sim’. Para os amigos, vizinhos e principalmente para os dois filhos, aos quais não deu à luz, mas a vida reservou para ela. 


O tempo é soberano e implacável

Por fim, trago em mim também o que aprendi com a Maria Cícera, a tia Nenê. A décima quinta filha da minha avó Luíza. Filha do coração.

Apenas seis anos mais velha que eu, nossa relação se confundia em momentos de tia e sobrinha e outros de irmãs. Com uma trajetória complicada, ela entrou e saiu da minha história muitas vezes.

Mas, sabe-se lá por quais desígnios do destino, no final para ela, no ano passado, lá estávamos, juntas. Por dias e dias pude lhe fazer companhia no quarto frio do hospital público. 

Enquanto me esforçava para tornar mais leve aquele ambiente pesado, resgatando histórias de nossos dias de criança e juventude, consegui rever suas gargalhadas. Mas não há muito mérito nisso, porque rir era muito fácil pra tia Nenê.

Com ela aprendi a me esforçar para não esquecer a minha criança interior. Ela não precisava de esforço para isso. Sua criança interior estava por lá, sempre à tona, pronta para fazer bolhas de sabão ou sentar-se ao chão com meu filho, quando pequeno, em meio a todos os brinquedos e fantasias que ele quisesse. E se eu surtava com a sala cheia de brinquedos, ela ria muito e só juntava tudo depois que ele adormecia.

Mas todo esse amor não significa que elas não sabiam rodar a baiana quando algo saía dos trilhos. E como sabiam. Aprendi isso também. E por falar em roda, a do tempo gira, imperativa, impassível diante de nossos desejos, e elas foram partindo, uma a uma.

Hoje, quando tudo fica muito complicado e o peso dos dias me vergam é a certeza do valor de tudo que aprendi com elas, mães imperfeitas e maravilhosas, que me mantém de pé. Com o olhar no horizonte, consciente de que por maior que seja o estrago de uma tempestade ele pode ser consertado com resiliência, força, doação, capacidade de sorrir, brincar e reconhecer o valor de um pote de doce de abóbora.

Feliz Dia das Mães. 
Maria D´Arc Hoyer é jornalista, teimosa demais e, talvez por isso, insista em acreditar no lado bom da vida.


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2 Comentários

  1. Que privilégio ter tantas "mães" cada uma do seu jeito, moldando quem você é hoje. Parabéns!

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    1. Sim, Regina. Um grande privilégio; mas tenho certeza que, por caminhos diferentes, todas nós temos essas heroínas em nossas vidas.

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