A fotografia e as almas roubadas

Colagem em preto e branco com famílias e casamentos

Diz a Wikipédia que o francês Joseph Nicéphore Niépcea é o autor da mais antiga fotografia de que se tem notícia, lá em 1.826. E, aliás, notícia e fotografia passariam a andar de mãos dadas pela história, embora entre o surgimento da fotografia e seu enlace com a imprensa mais de três décadas tenham se passado.
 
Sossegue, não vamos falar de coisas técnicas por aqui. Não domino a assunto tanto assim, por mais que o ame. Mas tem muita gente achando que domina. A fotografia virou ‘arroz com feijão’ na vida de todo mundo com a chegada da era digital.

E nem vai muito longe o tempo em que era preciso se trancar em um quarto quase escuro, com luzes avermelhadas e uma bancada de bandejas com líquidos reveladores.

Ótimo nome por sinal. Embalar de leve o papel fotográfico no revelador era a hora da verdade, especialmente para os fotógrafos amadores. O que será que o clique havia capturado? As surpresas da revelação, às vezes, eram muito boas. Outras vezes nem tanto assim. E a decepção de uma piscada de olhos inoportuna podia deixar o gosto amargo na boca por dias; afinal, o momento havia passado. C'est fini.

A roda girou e quanta facilidade hoje para registrar um momento e conferir na hora se a foto ficou boa ou não. Nada mais de cerimônia, hora marcada, roupa nova, arrumar os cabelos, quem sabe até passar um perfume. Por quê não?

Mas são novos tempos e a fotografia segue, explorada por aplicativos que destacam a vaidade e têm no registro de caras e bocas seu principal atrativo. Multiplicando indefinidamente narcisos presos às telinhas dos celulares.

E ainda saímos por aí a registrar tudo e qualquer coisa com um delicado toque na tela do smartphone. E tudo bem, salve a tecnologia e sua facilidades; mas, para mim, nada se compara ao apertar de botão de uma boa câmera, com a lente certa, a abertura correta o foco no objetivo do registro, por alguém que sabe o que está fazendo.

Cada imagem um recorte preciso de um pedaço da realidade

Tenho uma admiração enorme por esse trabalho. Da redação, vem a lembrança de uma angústia boa aguardando os fotógrafos que chegavam da rua com suas câmeras a tiracolo e iam para o laboratório; e, mais recentemente, para os computadores descarregar o cartão, enquanto os editores aguardavam o momento de escolher a imagem que iria ilustrar a reportagem e valeria tanto quanto as mil palavras que contavam o fato.

Não era fácil. Não é fácil pra quem ainda está nessa rotina. Fotógrafo que é fotógrafo e repórter também dificulta muito as coisas. Cada imagem diz mais que a outra. E é preciso ir buscar a composição da reportagem em pequenos detalhes para ter uma imagem vencedora.

Não importa se vai ser impressa ou virar um link no mar sem fim da internet. A fotografia profissional seguirá precisa e misteriosa, cada imagem única e capaz de aprisionar o momento que, de outra forma, estaria perdido no tempo.

Todo esse ‘conversê’ me veio à cabeça porque, volta e meia, vejo as fotos resgatadas pelos amigos de seus álbuns antigos, caixinhas de guardados e, mais recentemente, do arquivo digital do celular mesmo. 

Compartilhadas nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens elas sempre despertam uma enxurrada de comentários. Quantas lembranças e emoções podem ser enquadradas por um clique? Quem sabe... Como pudemos viver tanto tempo sem elas?

Mulher e rapaz, ambos de óculos, abraçados, fazem selfie
Vinícius Hoyer e um clique maroto enquanto eu produzia esse texto, hoje. 

Percebo que todos temos essa necessidade de visitar o passado por meio desses registros preciosos.  Registros que nos fazem parar, contemplar, rir e chorar diante de momentos perfeitos, que só descobrimos que eram perfeitos tardiamente, olhando a fotografia, por vezes desbotada, com aquele pedacinho de nossa alma, ali, absoluto, roubado. 

Maria D´Arc Hoyer é jornalista

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2 Comentários

  1. Em alguma medida a fotografia é um artefato arqueológico por natureza. Nos remete ao tempos "em que haviam galos noites e quintais". Seu texto me fez lembrar das redações por onde andei. Me fez também desenterrar um texto que escrevi a 15 anos sobre a fotografia química e a digital. Veja lá: http://sapucahyphoto.blogspot.com

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